As chamadas indústrias das ciências da vida, rótulo que se aplica às farmacêuticas, alimentícias, fármaco-veterinárias, de cosméticos, entre outras, como o próprio nome define, manipulam, direta ou indiretamente, situações sensíveis à saúde humana, exigindo, portanto, o máximo controle da contaminação nos seus processos produtivos. Projetos de sistemas de AVAC para tais aplicações quase sempre requerem atenção redobrada, com o estrito respeito às normas e recomendações de agentes fiscalizatórios.

O consultor Wili Coloza Hoffmann, da Anthares, lista algumas recomendações a serem observados em projetos nesses segmentos:

– Controle da concentração de material particulado nos ambientes, que reduzem a contaminação por microrganismos;

– Contenção dos ambientes, tanto aqueles protetores (nos quais se deseja a proteção das pessoas ou processo, evitando a penetração de contaminantes externos), quanto os que devem evitar a dispersão de contaminantes gerados internamente, normalmente onde pode haver pessoas contaminadas ou processos com princípio ativo que traga algum risco para saúde das pessoas;

– Controle de umidade relativa e temperatura de forma a contribuir com o processo tornando-o mais seguro e, também para os ambientes hospitalares, reduzindo a proliferação de microorganismos;

– Renovação do ar para diluir os contaminantes gasosos gerados internamente;

– Distribuição adequada do ar nos ambientes para facilitar a remoção dos contaminantes gerados internamente.

Indústria alimentícia

Fernando Britto, consultor em salas limpas e VAC industrial na Adriferco Engenharia e Consultoria, esclarece que na área alimentícia, dada a natureza do produto, não existem legislações com exigências específicas quanto à qualidade do ar em si, mas regulamentos genéricos indicando a necessidade de “limpeza” e “controle de contaminações”, exceto no caso de proteínas animais, que requerem condições de temperatura específicas.

Entretanto, como explica Jeferson Carrara, engenheiro de vendas da Munters do Brasil, existem resoluções, regulamentações e recomendações normativas para diversos segmentos. “Algumas com objetivo de melhorar as condições de trabalho do usuário, outras com objetivo de melhoria na qualidade e segurança do produto. Para pegar um tema bem atual, vamos analisar as indústrias de processamento de alimentos. Estas indústrias possuem áreas com centenas de pessoas e condições de temperatura inferiores a 10°C, portanto, a correta e eficiente renovação de ar é imprescindível. No entanto, fornecer o ar externo para condições de temperaturas tão baixas traz enorme carga de umidade para o sistema, o que por consequência poderá gerar condensação em superfícies sobre o produto resfriado, refrigerado ou congelado, e esta será vetor de contaminação. Neste caso, o projeto deverá ter uma enorme preocupação com a desumidificação do ar externo, criando um ambiente com ponto de orvalho abaixo da temperatura da superfície, evitando a ocorrência da condensação e o crescimento microbiano e a adoção de um balanço de massa compatível com cascata de pressão estabelecida.”

“Praticamente todas as salas onde se processam alimentos expostos ao ambiente necessitam algum tipo de controle. Cito como exemplo as salas de cortes onde os alimentos se encontram numa temperatura entre 4°C a 7°C e a temperatura ambiente entre 10°C a 12°C; nestas áreas é muito importante controlar a umidade relativa entre 60% e 70% para evitar que a água presente no ar orvalhe sobre os produtos e propague contaminações. Nestas mesmas salas, onde a mão de obra é intensiva, o controle do teor de dióxido de carbono, como indicador de renovação de ar externo, é recomendado para o conforto e bem-estar do ambiente. Outro exemplo são as salas de manipulação de produtos em pó, que devido aos odores, particulados em suspensão e higroscopia do produto, necessitam de um projeto de renovação de ar e controle de umidade adequados”, continua Carrara.

Fármacos

“Quando tratamos de fármacos, principalmente de uso humano, temos uma legislação específica da ANVISA, a RDC 301 de 2019, que descreve as linhas gerais das BPF – Boas Práticas de Fabricação, para produção farmacêutica, acompanhada de diversas instruções normativas, cada uma destinada a um tipo específico de fármaco. Mesmo assim, apenas a ANVISA IN-35 (2019), que trata de produtos estéreis, indica de forma clara e inequívoca as condições de processamento, com relação a classificações de limpeza e gradientes de pressão. O MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, considera que fármacos de uso veterinário devem seguir as mesmas regulamentações daqueles de uso humano, sendo aplicada a BPF descrita pela RDC 301 (2019) e demais instruções normativas”, explica Britto.

O diretor da Adriferco diz que “em ambos os casos, fármacos não-estéreis adotam o ‘Guia da Qualidade para Sistemas de Tratamento de Ar e Monitoramento Ambiental na Indústria Farmacêutica’ que, de forma geral, recomenda a utilização de antecâmaras para acesso e egresso das áreas produtivas, sistemas com filtragem Grossa+Fina, se operarem sem recirculação do ar (100% de ar exterior), acrescidos de filtragem HEPA, caso adotem recirculação do ar, sendo recomendada a utilização de grau de limpeza D nas áreas produtivas, o que equivale à classificação de limpeza ISO Classe 8 (conforme NBR ISO 14644-1), na condição ‘em repouso’ (com equipamentos funcionando, porém, sem presença dos operadores). Produtos específicos, tais como Soluções Parenterais e Nutrição Parenteral, Terapia Antineoplásica, Farmácia Magistral, dentre outros, possuem regulamentos específicos. Finalmente, produtos hospitalares, tais como bolsas de coleta de sangue, máscaras para inalação, eletrodos, implantes etc., possuem legislações próprias, com diferentes exigências.”

Hoffmann, que inclui as instalações hospitalares no rol das ciências da vida, diz que as particularidades de projeto e instalação para o tratamento do ar devem considerar em primeiro lugar a análise do risco. “Os cuidados sempre estão associados ao risco para os usuários, quanto maior o risco, maiores devem ser os recursos técnicos das instalações. Por exemplo, dentro da área farmacêutica produtos injetáveis apresentam maiores riscos e a qualidade deve ser assegurada. Para isso, instalações com mais recursos são necessárias e o projeto deve levar isto em conta.”

“De modo geral, o objetivo é controlar a contaminação biológica (microorganismos ou partículas viáveis) ou por partículas inertes (não-viáveis), de forma a preservar a integridade e qualidade do produto. Fazemos isso insuflando ar com nível de filtragem e quantidades suficientes e adequados para cada processo produtivo, com temperatura e umidade controladas e protegendo as áreas contra entrada de partículas por meio de gradientes de pressão apropriados. Em determinados processos produtivos, precisamos efetuar contenções para proteger as salas circundantes e o meio ambiente, como no caso da produção de medicamentos sólidos orais (comprimidos, cápsulas ou sachês), pois, seu processamento e embalagem geralmente libera partículas do próprio medicamento, que embora não seja uma contaminação para o próprio processo, pode se constituir em contaminação para os demais processos ocorridos nas salas vizinhas. Algumas classes de medicamentos, tais como vacinas, antibióticos, antineoplásicos, hormônios, anestésicos, antirretrovirais, radio-fármacos, dentre outros, exigem contenção intensiva, pois podem causar danos à comunidade vizinha e/ou meio ambiente”, ressalta Britto.

Classificação de limpeza e filtração

Segundo o diretor da Adriferco, a atual regulamentação da ANVISA exige classificações de limpeza para os fármacos (incluindo nutrições parenterais, antineoplásicos, antibióticos etc.), serviços de terapia antineoplásica e processamento de células humanas e determinadas áreas hospitalares (centros cirúrgicos específicos, áreas de isolamento etc.). Também os regulamentos internacionais, como o Eudralex (europeu), FDA (americano) e WHO (OMS) seguem a mesma orientação geral.

“Produção e envase de produtos estéreis, bem como a manipulação de parenterais (produtos injetáveis) possuem grandes exigências de classificação de limpeza, utilizando grau A nas áreas de manipulação e envase, grau C nas áreas de formulação não-estéril e limpeza de peças, e grau D, em áreas auxiliares. A ANVISA IN 35 (2019) indica as aplicações, concentrações de partículas (viáveis e não-viáveis) e gradientes de pressão requeridos para cada grau de limpeza. Exceto nos casos que possuem regulamentações específicas, para todos os demais casos a ANVISA recomenda a adoção de grau D”, explica Britto.

Hoffmann lembra que, independente da aplicação, sempre há a necessidade de um certo nível de filtração em todas as instalações. “A utilização de filtros de alta eficiência é fundamental em casos de instalações que demonstrem maiores riscos quanto à contaminação. Mesmo nestas instalações sempre serão necessárias as baterias de filtros mais grossos para mais finos, visando preservar os filtros mais finos. As normas NBR ISO 16890-1 e NBR 16101 (filtros de uso geral) e NBR ISO 29463-1 (filtros de alta eficiência), que estão em vigor, definem a classificação dos filtros quanto à sua eficiência e devem ser utilizadas para especificação em cada aplicação.”

O engenheiro Vinicius M. Fernandes, da Aeroglass, lembra que as exigências para filtragem do ar estão vinculadas ao tipo específico de atividade, e devem atender especificações presentes em normas técnicas específicas. “O mesmo vale para os demais usos, deve-se sempre respeitar as especificações da qualidade do ar interior de acordo com normas técnicas. Em ambientes considerados de riscos, como áreas de envase e manipulação de produtos, é comum a necessidade da instalação de filtros absolutos. Os filtros absolutos estão presentes no sistema de tratamento de ar, mas também estão em equipamento como fluxos laminares.  Estes filtros possuem eficiências de 99,97% para partículas de 0,3 µ, conforme NBR ISO 29463-1/DIN EN-1822; os filtros absolutos têm suas principais aplicações em salas limpas, hospitais, capelas de fluxo laminar, indústrias farmacêuticas, alimentícias e demais indústrias das ciências da vida”, conclui.

Estanqueidade na distribuição do ar

Outro ponto de atenção é o nível de estanqueidade requerido nessas instalações especiais. “Normalmente o ar tratado para este tipo de instalação custa mais caro devido à necessidade de maior controle, seja pela filtragem necessária ou pela energia utilizada para atender aos requisitos de qualidade; portanto, quanto menos se perder durante a sua distribuição para os ambientes, melhor. Isto sem contar os riscos de contaminação do ar já tratado, que mesmo pressurizado pode sofrer indução de fora por efeito Venturi. Para tanto, os projetistas de sistemas de AVAC devem especificar adequadamente os dutos quanto à classe de pressão e classe de vazamento. A Norma NBR 16401, que está em revisão, quando for publicada trará algumas ferramentas que ajudarão o projetista na decisão da classe necessária a ser especificada”, explica o consultor da Anthares.

Complementando, Britto, da Adriferco, lembra que as classes de estanqueidade dos dutos de insuflação dependem da posição de filtragem, por implicarem em maior pressão estática, devido à presença ou não de elementos filtrantes ao longo ou no final das redes. Isso também é verdade no caso de sistemas de exaustão ou retorno de áreas com requisitos de contenção.

“Em meus projetos sempre especifico a selagem das junções longitudinais (conhecidas como ilhargas) e transversais (flanges TDC) com selante monocomponente à base de poliuretano, de alta resistência ao ‘rasgamento’, para conferir vedação com longa vida útil às junções. Além disso, recomendo adoção de classe de construção e selagem para todos os dutos para suportarem pressão estática de 1000 Pa, inclusive de exaustão e retorno, pois, como os dutos de exaustão e/ou retorno das salas limpas são responsáveis pela manutenção do gradiente de pressões, eventuais infiltrações em suas junções dificultam a obtenção e manutenção dos escoamentos requeridos para a pressurização dos ambientes, especialmente no caso de pequenas antecâmaras, principalmente do tipo ralo.”

Também as unidades de tratamento de ar pedem atenção. “A estanqueidade dos gabinetes, sua resistência mecânica às pressões internas, resistência química aos saneantes utilizados e as pontes térmicas em seus elementos estruturais, são os principais requisitos para as unidades de tratamento de ar aplicadas em salas limpas. Como requerem inspeções e trocas frequentes de seus vários estágios de filtragem, a adoção de portas de fácil abertura e com visores, além do uso de iluminação interna, confere maior segurança e manutenibilidade ao processo, reduzindo o tempo de parada de fábrica para as manutenções”, explica Britto.

“Embora os vários estágios de filtragem protejam a serpentina de resfriamento e desumidificação dos air handlers e, geralmente, garantem baixa incrustação e pouca necessidade de limpeza, as elevadas taxas de reposição de ar requeridas para a manutenção dos gradientes de pressão introduzem muito particulado no sistema, dentre os quais microorganismos, principalmente fungos. Então, tenho recomendado a adoção de sistemas UVc para irradiação das serpentinas úmidas, que se mostraram bastante eficazes para a contenção de microorganismos em geral”, conclui o diretor da Adriferco.

Ronaldo Almeida  – ronaldo@nteditorial.com.br

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